DOCUMENTO: Plantações de árvores para o mercado de carbono. Por que, como e onde elas estão se expandindo?

Este documento apresenta uma visão geral da expansão das plantações de árvores voltadas para os mercados de carbono. Onde estão localizadas essas plantações, quem está lucrando com elas, quais têm sido os impactos para as comunidades que vivem nas terras ocupadas por esses projetos e quais iniciativas internacionais estão sendo realizadas para impulsionar as plantações de árvores para compensação de carbono.

Assine em solidariedade! FORA Wildlife Works do território Ka’apor!

A empresa norte-americana Wildlife Works quer vender créditos de CO2 na floresta tropical onde vive o povo Ka'apor, no Brasil. Mas o conselho de gestão Ka'apor rejeita o projeto. Os Ka'apor conservaram a floresta e não querem fazer nenhum tipo de negócio com a natureza. A Wildlife Works está causando e aprofundando conflitos internos.

Solicite às autoridades brasileiras que proíbam a Wildlife Works e seus parceiros de operar na Terra Indígena Alto Turiaçu.  

Leia a petição abaixo. Assine aqui se estiver em nome de uma organização. E aqui se for um indivíduo. 

Para: Ministra dos Povos Indígenas, sra. Sonia Guajajara; Presidente da FUNAI, sra. Joenia Wapichana; Coordenadora da 6ª Câmara do Ministério Público Federal - Povos Indígenas e Comunidades Tradicionais, sra. Eliana Peres Torelly de Carvalho; Relatora Especial

Prezadas senhoras,

Há dois anos, as lideranças do Conselho Tuxa Ta Pame, da etnia Ka'apor, vêm denunciando ao Ministério Público Federal (MPF) e à Funai a violação de direitos em seu território, no Maranhão, pela empresa norte-americana Wildlife Works. De acordo com as denúncias, a empresa quer realizar um projeto de venda de créditos de carbono tirando proveito da terra indígena Alto Turiaçu, violando leis nacionais e internacionais.

Em janeiro de 2024, o Conselho Indígena Ka'apor informou formalmente à empresa, por meio de uma carta, que não aceitava a presença de estrangeiros em conexão com o projeto CO2 na área e exigia a retirada imediata e a interrupção de todas as atividades.

A Wildlife Works não obteve o consentimento prévio, livre e informado dos Ka'apor para o projeto, conforme exigido pela Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) da ONU, que o Brasil ratificou.

A empresa não só realiza reuniões e encontros em várias aldeias da área, como também desconsidera as decisões dos líderes indígenas. As atividades e promessas da Wildlife Works também geram conflitos entre os Ka'apor, tornando ainda mais vulnerável a área, que há décadas sofre com a invasão de madeireiros, caçadores ilegais e criadores de gado.

A Wildlife Works começou a invadir a terra indígena dos Ka'apor quando a empresa nem sequer estava registrada no Brasil - o que é ilegal.

Em vista do agravamento da situação, em outubro de 2024, o Tuxa Ta Pame propôs uma ação judicial, que tramita na Justiça Federal, contra a Wildlife Works, Funai e Governo Federal, para que seja suspensa toda e qualquer  atividade da empresa na T.I Alto Turiaçu, bem como que o Governo Federal e Funai realizem ações de fiscalização e controle no território Ka'apor, impedindo o ingresso de empresas, nacionais e/ou estrangeiras, que promovam o comércio de crédito de carbono, em decorrência da ausência de qualquer regulamentação.

Pedimos a Vossas Excelências que tomem medidas urgentes para impedir que a empresa entre na terra indígena e continue a violar os direitos do povo Ka'apor em seu próprio território.

ONGs a serviço da pilhagem de territórios: o caso da Fundação Earthworm

Por décadas, corporações do agronegócio, da mineração e do petróleo tem estabelecido parcerias com ONGs e entidades sem fins lucrativos para tentar lavar sua imagem diante da poluição e da destruição causadas por suas atividades. Não é novidade que corporações do agronegócio, mineradoras ou petroleiras usem ONGs e outras entidades sem fins lucrativos para tentar amenizar a imagem de destruição à qual estão inevitavelmente associadas.

Para as empresas, promover-se como “sustentáveis” a partir dessas parcerias é uma estratégia eficiente para atender a demandas de consumidores, obter benefícios fiscais, acessar financiamentos e cumprir medidas compensatórias exigidas por órgãos reguladores. 
Contudo, para além da lavagem verde, as entidades contratadas por empresas extrativistas e do agronegócio também têm crescentemente assumido um papel central na assim chamada “mediação de conflitos” com comunidades rurais que são parte dos territórios visados por esses setores. Uma dessas entidades é a Fundação Earthworm, cujo nome tem aparecido com frequência nos relatos que o WRM recebe de comunidades enfrentando conflitos com empresas nos territórios que habitam. 

O que é a Fundação Earthworm?

Fundada em 1999 como o Tropical Forest Trust, somente em 2019 a Earthworm converteu-se em uma fundação. Com sede na Suíça, a entidade conta com mais de 300 funcionários em mais de 15 escritórios em diversos países.(1) 

Segundo a entidade, sua missão é “criar um mundo onde pessoas e natureza prosperem em harmonia” (2). Um de seus vídeos promocionais diz que a Earthworm “cria soluções com empresas para curar a natureza e as pessoas”. (3) Esse tom quase lírico está muito longe de expressar o que a Fundação Earthworm faz e para quem trabalha. Na prática, sua atuação ajuda as corporações internacionais a garantir que nada atrapalhe o fluxo de mercadorias ao longo de suas longas cadeias de suprimentos, de modo que as corporações não enfrentem obstáculos para extrair matérias-primas e aumentar a venda de sua produção em mercados globalizados. 

As empresas e a Fundação Earthworm

Em seu relatório anual de 2023, grandes empresas figuram entre os apoiadores da Fundação Earthworm, sobretudo do agronegócio, mas também da mineração, bens de consumo e gigantes do varejo.(4) Em anos anteriores, a entidade também já recebeu fundos de petroleiras, como a Shell.

Empresas apoiadoras da Earthworm em 2023

Setor

 

Agronegócio

Bunge, Cargill, Wilmar, Asia Pulp & Paper, Louis Dreyfus Foundation, Olam, Veracel (Suzano and Stora Enso), Socfin, entre outros

Indústria de bens de consumo e gigantes do varejo

Pepsico, Nestle, Danone, Mars, L’Oréal, Colgate-Palmolive, Mc Donald’s, Wal-Mart Foundation, 3M, entre outros

Mineração

Alcoa

De 2019 a 2023, a receita da Fundação Earthworm cresceu 59 porcento, totalizando quase 100 milhões de dólares recebidos no período. Cerca de 90 porcento do montante é oriundo dos mais de 50 membros e parceiros – principalmente empresas privadas – contrastando com os cerca de 4 porcento provenientes de subvenções de autoridades públicas. O crescimento da receita também reflete nos proventos dos oito membros da equipe executiva da entidade, que em 2023 receberam 1.6 milhões de dólares.(5)  

Em um de seus vídeos promocionais, a Earthworm afirma que “se não trabalharmos com empresas, nós não mudaremos o mundo”.(6) O fato de que várias dessas empresas são efetivamente membros da Fundação levanta a questão: onde está a linha entre trabalhar com elas e trabalhar para elas?

O que a Fundação Earthworm faz?

A Earthworm entra em cena quando o conflito entre uma empresa e comunidades ameaça, de alguma forma, afetar os lucros corporativos. A Fundação é então contratada para resolver o problema através de boa vontade de todas as partes envolvidas em um processo de mediação. No entanto, o que o WRM aprendeu em décadas de apoio às lutas de comunidades é que a apropriação de terras, a violência, os conflitos e a destruição são partes inerentes, inseparáveis dos modelos de negócios dos clientes da Earthworm, e impossíveis de serem resolvidos por meio de mediação e boa vontade.

Com esse objetivo, a Earthworm aborda as comunidades afetadas, organiza cursos e outras atividades com as mesmas, bem como com ONGs, governos, acadêmicos, etc. Entretanto, até que ponto é possível acreditar que uma entidade que se propõe a mediar conflitos atuará de forma justa quando a grande maioria de seu dinheiro vem das empresas que causam os conflitos? Para além do dinheiro, outro questionamento: pode haver qualquer mediação honesta quando a visão de mundo de quem se apresenta como mediador é muito mais alinhada com a das empresas do que das comunidades afetadas? Questões como essas têm surgido em vários lugares onde a Earthworm tem intervindo em nome de empresas.

A Earthworm na “mediação” de conflitos entre a indústria do dendê e comunidades rurais

Tomemos como exemplo um dos principais produtos em torno do qual gira o trabalho da Earthworm: o óleo de palma (dendê). O sistema de produção de óleo de palma adotado por várias empresas que financiam a Earthworm, é baseado na implantação de monoculturas, uso intenso de pesticidas, fertilizantes sintéticos, superexploração da força de trabalho e apropriação de territórios comunitários através de táticas corporativas já conhecidas. (7) Na África Ocidental e Central, particularmente, o próprio processo de como as empresas de óleo de palma receberam os direitos de concessão de terras está no centro das disputas com as comunidades. Empresas multinationais como a Socfin, Wilmar e Golden Veroleum continuam a se beneficiar das leis fundiárias da era colonial que desrespeitam os direitos das comunidades sobre suas terras tradicionais e entregaram vastas áreas de territórios comunitários a essas empresas.(8)

Como consequência, esse modelo tem inevitavelmente significado perda de terras, violência e desestruturação de comunidades tradicionais. As comunidades afetadas também passam a enfrentar águas contaminadas, diminuição da caça, alimentos e plantas medicinais – isto é, os territórios em que vivem são completamente transformados com a produção de commodities para exportação. 

A incompatibilidade e o choque entre esse modelo de produção e o modo de vida de comunidades tradicionais têm gerado graves conflitos em diversas regiões do Sul Global. A Fundação Earthworm tem sido contratada por empresas do setor do óleo de palma para atuar em vários desses conflitos, aumentado os problemas para as comunidades.

Earthworm e Socfin em Camarões e na Libéria

Um exemplo é a gigante do agronegócio Socfin, cujos acionistas majoritários são a família belga Fabri e o bilionário francês Vincent Bolloré. A empresa se tornou membro da Earthworm em 2017, na mesma época em que publicou sua “política de gestão responsável”. Através desse documento, a Socfin afirma estar comprometida, entre outros, com comunidades rurais nas regiões de suas plantações de dendê e seringueiras.

Camarões, Libéria, Costa do Marfim, Nigéria e Cambodia são alguns dos países em que a Socfin opera, e nos quais a Earthworm tem conduzido investigações para apurar conflitos que a presença da empresa gera com comunidades. Desde 2023, os sete relatórios publicados pela Earthworm sobre esses conflitos seguem um padrão, do qual destacamos três aspectos. Sâo caracteristicas que a fazem soar muito mais como uma porta-voz do grupo Socfin do que como uma entidade idônea que está investigando denúncias contra a empresa.(9)

Primeiro, cabe mencionar que a Earthworm reconhece – embora seria impossível não o fazer – que “a Socfin continua a receber reclamações ambientais e sociais”, acrescentando que essas reclamações vêm ”da mídia internacional e de ONGs”.  Anote que ao complementar a frase desta maneira logo no início desses relatórios, a Earthworm remete o problema à mídia e às ONGs, como se fossem elas – e não as comunidades –  que estivessem denunciando as violações. Além disso, nos relatórios da Earthworm, esse ‘reconhecimento’ das violações da Socfin sempre é acompanhado de uma menção de que a Socfin tem tido “progresso na implementação de seus compromissos de gestão responsável”.

Segundo, dentre os vários impactos relatados pelas comunidades – como apropriação irregular de terras, violência sexual, poluição de corpos d'água, destruição de túmulos e locais sagrados, ameaças e intimidação, entre muitos outros (10) –  apenas uma parte é reconhecida pela Earthworm em seus relatórios. A outra parte dos impactos acaba invariavelmente classificada explicitamente como “alegações infundadas”, “parcialmente fundadas”, ou ”fundadas, mas não de responsabilidade da Socfin”. Entre os exemplos de desconsideração com as violações apontadas está um caso específico de três áreas em Camarões (Edéa, Mbongo, e Mbambou). em que está determinado que a Socfin deve devolver milhares de hectares para autoridades locais descentralisadas. Segundo a Earthworm, trata-se de uma medida “em andamento”, iniciada há sete anos com estudos para definir os limites das áreas plantadas. Diante da morosidade do processo, as comunidades iniciaram a retomada de certas áreas, reivindicando seu direito já estabelecido de posse e acesso à terra. Entretanto, evitando uma descrição mais apurada das legítimas retomadas de terra pelas comunidades, a Earthworm menciona a “intrusão por terceiros” e relata que “terceiros (comunidades, trabalhadores, etc.) estão invadindo as terras tituladas da Socapalm”. (11) 

Outro exemplo vem da Liberia. Depois de 7 anos de parceria, a incapacidade da Socfin e da Earthworm de resolver os conflitos com comunidades fez com que a empresa vendesse uma das suas plantações no país em 2024. (12) Mas por que, se havia ‘progresso sendo feito’?

A terceira característica dos relatórios da Fundação Earthworm é precisamente a tônica positiva, de que tudo está em “processo de melhoria contínua”. Em uma das investigações mais recentes sobre os conflitos com comunidades locais (embora a palavra conflito não apareça em nenhum dos relatórios sobre a Socfin), o relatório da Earthworm encerra afirmando que “apesar dos desafios encontrados no início das operações da Socfin no Camboja, a organização tomou medidas significativas para implementar progressivamente seus compromissos de sustentabilidade”. 

A Fundação Earthworm relata que a Socfin está progredindo enquanto a empresa continua com seus negócios como de costume. (13) De maneira ultrajantemente suave, a Earthworm desvia do fato de que depois de quase uma década de suporte à Socfin, os problemas enfrentados e denunciados pelas comunidades persistem nas diferentes regiões e países operados pela empresa, sobretudo às queixas relativas ao direito à terra e às violações de direitos tradicionais das comunidades às suas terras.

Earthworm e Agropalma no Brasil

Agroapalma é uma das maiores empresas brasileiras de óleo de dendê no Brasil. Embora afirme que sua relação com as comunidades está ‘no coração da sua estratégia de sustentabilidade’, a Agropalma é acusada de grilagem de terras e uso de violência para expulsar comunidades tradicionais. Por causa de acusações desse tipo, teve sua certificação pelo RSPO ([Mesa Redonda do Dendê Sustentável) suspensa em 2023.

Atendendo às exigências de um cliente, a Agropalma contrata a Fundação Earthworm desde 2022. A Earthworm montou um escritório em Quatro Bocas, município de Tomé-Açú, no epicentro da “guerra do dendê”, contando também com o apoio da Cargil e da Belem Bioenergia Brasil (BBB), empresas atuantes no mesmo setor. Nessa região, a Earthworm diz que tem ‘empoderado comunidades’ e diminuído os conflitos nas “cadeias de suprimento”. (14)

Por um lado, esse engajamento da Agropalma com a Earthworm tem permitido tranquilizar os clientes da empresa. O relatório da Sime Darby Guthrie International (fornecedora da Nestlé, Unilever, P&G), por exemplo, menciona a participação de “um terceiro para realizar uma avaliação externa investigando os supostos problemas de direitos sobre a terra”, sugerindo que a Earthworm é uma peça-chave ligada ao plano de ação da Agropalma “para recuperar a certificação RSPO”.(15) Contudo, na contramão da positividade das corporações consumidoras internacionais, os relatos que chegam da região são de que, para as comunidades, a atuação da Earthworm tem fomentado o faccionalismo interno, contribuindo para desestruturar comunidades indígenas e quilombolas.

Vozes dos territórios

Buscando entender melhor as implicações da presença da Fundação Earthworm para as comunidades na prática, o WRM facilitou um intercâmbio online com ativistas de Camarões e do Brasil. Seus grupos estão envolvidos com a luta por justiça social e pelos direitos das comunidades impactadas não só pelo colonialismo do dendê, mas também pela intervenção dessa Fundação contratada pelas empresas.  
De Camarões participou SYNAPARCAM, uma organização que defende os direitos das comunidades afetadas pelas plantações da Socfin. Do Brasil participou Elielson Pereira da Silva. Nascido e criado no Pará, Elielson pesquisa os conflitos territoriais e étnicos em seu estado, buscando dar visibilidade para a situação e a luta das comunidades. Ambos nos contaram um pouco sobre a atuação da Fundação Earthworm em seus territórios. Confira abaixo parte da conversa.

WRM: Como a Fundação Earthworm entrou em contato com a sua organização e como você descreveria o trabalho da entidade?

ELIELSON (Pará, Brasil): A Earthworm chegou no vale do Acará em 2023, contratada por Cargill, compradora de óleo da Agropalma, em meio a conflitos acirrados com povos tradicionais. Cargil, diante da repercussão dos conflitos, tenta “limpar a cadeia de suprimentos”. Então a Earthworm começou a procurar lideranças indígenas e quilombolas, fazer uma mediação, na tentativa de firmar um acordo entre os respresentantes dessas comunidades e a empresa do dendê.

Em 2023, em articulação com a Agropalma, a Earthworm provocou uma divisão interna entre os indígenas, extremamente nociva, criando outra associação indígena, que passou a sentar à mesa com a empresa. A Agropalma passou, então, a prometer que não haveria mais conflitos e que iria ceder para eles uma área para eles poderem colher o dendê e vendê-lo.

Nos últimos 40 anos a empresa criou muitos impedimentos às comunidades: aos rios, ao cemitério, à coleta de frutas, a roças. A circulação é toda condicionada às interdições impostas pela empresa. Mas na mesa de negociação a Agropalma passou a prometer que tudo seria diferente, contanto que a nova associação cooptada garantisse que a demanda da outra associação (de reconhecimento de seus direitos territoriais) fosse interrompida. Então criou-se essa divisão interna.

Como essas promessas não aconteceram e os representantes da ONG [Earthworm] desapareceram, assim como os diretores da empresa, os indígenas promoveram uma retomada do território, no sentido de chamar a atenção, alertar a imprensa, e no decorrer desse processo, em 2023, ocorreu o assassinato de um indígena Turiwara, baleado pelos seguranças contratados pela empresa. (16)

Hoje nós temos um faccionalismo, com duas organizações indígenas, divisão interna estimulada pela ONG [Earthworm], sob proteção da empresa Agropalma, que tem causado muitos problemas e dificultado muito o processo de organização social e política dos indígena. 

Suspeitamos que Earthworm esteja envolvida na costura de novo acordo para fazer as comunidades indígenas desistirem das reivindicações territoriais, face ao processo de venda da Agropalma S.A., que está em curso desde meados de 2022.  A empresa interessada em adquirir os ativos da Agropalma S.A. é a Belém Bioenergia Brasil (BBB), uma joint venture formada pela Galp Energia (Portugal) e pela Palma Tauá Brasil (associação entre o Banco Opportunitty Agro e a Dentauá S.A). 

SYNAPARCAM (Camarões): Em Camarões, a Earthworm (antes chamada TFT) tem um Centro de Formação, na capital. Em 2011 alguns de nós fomos lá para dar um curso sobre defesa das terras das comunidades. A comunidade já estava sofrendo, há décadas, com a ocupação das nossas terras ancestrais pela Socapalm. A Earthworm nos convidou para apresentar os problemas que tínhamos com a empresa. Nós estávamos começando a formar nossa organização Synaparcam. 

Quando eles mudaram de nome [de TFT para Earthworm] ela disse que agora somos uma nova entidade e podemos ajudar vocês a resolver o problema com a Socapalm, do grupo Socfin, passando a se posicionar como mediadora. Mas depois de duas ou três reuniões, que além da empresa incluíam representantes da administração pública, lideranças tradicionais das comunidades e elites locais, a Synaparcam se retirou porque viu que aquilo era só pra criar uma imagem para fora de que está trabalhando com a Earthworm para resolver o conflito.

Entre 2012 e 2020 a Earthworm tentou várias vezes se posicionar como mediadora, mas a comunidade percebeu que não adianta se reunir com a empresa tendo a Earthworm como intermediária. Em setembro de 2020, a Earthworm organizou uma dessas reuniões com a empresa e a Synaparcam, dizendo que seria útil porque comunidades conseguiriam ser ouvidas pela direção. Depois da reunião vimos que a Earthworn havia produzido um bom relatório, mas que as resoluções apresentadas estavam além da capacidade da Earthworm de fazer com que a Socapalm aceitasse. A partir dessa observação, entendemos que a Earthworm não estava jogando limpo. Bom, foram assim nossas primeiras experiências com a Earthworm e foi assim que inicialmente tivemos uma certa confiança de que eles se engajariam do jeito como haviam se apresentado.

WRM: A Fundação Earthworm é paga principalmente pelas empresas que a contratam para “mediar” os conflitos, entre outros. Quando a Earthworm se apresentou à sua organização/comunidade, eles explicaram sua relação com as empresas e quem financia seu trabalho? Como você acha que a fonte de financiamento da Earthworm influencia esses processos de “mediação de conflitos”? 

ELIELSON: Pelos relatos das comunidades, a forma de se apresentar é como se fosse uma organização independente; não têm aparecido esses vínculos, embora eles digam que acompanham as cadeias de suprimentos das empresas. Essas palavrinhas “organização independente” aparecem bastante nos diálogos. O que a gente tem observado são experiências de mediação muito nociva, de harmonia coerciva, de fomentar a divisão interna para enfraquecer a luta dos povos e de seu processo identitário.

SYNAPARCAM: O representante da Earthworm na África é camaronês, e sim, ele nos informou que a Earthworm recebe honorários da Socfin. E ele nos informou que se a Socfin não mudasse sua política, a Earthworm abandonaria o processo de mediação e o trabalho com a empresa. Ele disse “Nós não deixaremos as empresas dos colonizadores fazerem como antes”, [em referência ao fato da Socfin ser controlada pelo bilionário francês, Víncent Bolloré].  Mas percebemos que ao longo do processo a Earthwoprm tem priorizado os honorários sobre as comunidades. Então estamos cientes [da origem dos recursos], é o mesmo padrão de outras grandes ONGs como o WWF. 

WRM: A Synaparcam se recusou a realizar “visitas de campo” conjuntas com a Earthworm em 2023.  Você poderia nos contar um pouco mais sobre os motivos dessa decisão e por que a Synaparcam decidiu preparar seu próprio relatório?

SYNAPARCAM: Em 2023 a Synaparcam já sabia que a Socapalm não tinha cumprido nenhum compromisso que eles assumiram antes. Antes de 2023, nós já tinhamos parado de fazer coisas juntos com a Earthworm. Então buscamos o próprio financiamento para fazer um bom relatório (17), inclusive com boas pessoas de fora em paralelo com o da Earthworm.

A pesquisa da Synaparcam confirmou sete pontos de conflito, mas a Earthworm identificou muito menos. Por exemplo, o relatório da Earthworm diz que a empresa construiu várias escolas e que quase não havia poluição de rios. O relatório da Earthworm foi publicado antes do relatório da Synaparcam. A Earthworm nunca comentou sobre vários pontos identificados no relatório da Synaparcam. Parecem dois mundos distintos nesses dois relatórios.

O mesmo aconteceu com a RSPO. O fato da Socapalm querer o selo de certificação da RSPO também foi um dos motivos para contratar a Earthworm. 

WRM: Sobre a RSPO, mudando o foco para o caso do Brasil, sabemos que a Agropalma teve sua certificação suspensa em 2023 por causa das acusações de grilagem de terras e violência. Elielson, você acha que a contratação da Earthworm representa uma garantia de respeito da Agropalma aos direitos das comunidades?

ELIELSON: De maneira nenhuma representa qualquer tipo de garantia. A empresa se encontra em conflito aberto com as comunidades. Todo esse investimento gigantesco em propaganda, em comunicação, todo esse discurso de ‘responsabilidade social corporativa’ faz da Agropalma um grande caso de greenwashing. Esse “arsenal discursivo” de dendê sustentável, relação harmoniosa, etc, é muito diferente da realidade, que passa pelo agravamento de conflitos, bloqueio do acesso a áreas de uso comum, a cemitérios tradicionais, de navegar no rio, e pasmem, abertura de grandes trincheiras e barricadas desde 2022. Grandes valas, às vezes com 5 metros de profundidade e 2 metros de largura, que remetem a uma guerra literal, com relatos e risco muito grande de acidentes. Há comunidades que estão cercadas, por exemplo, com arames farpados, como se fosse a fronteira do México com os EUA, ou da Palestina com Israel. 

WRM: E o que a Earthworm fala sobre isso? 

ELIELSON: Em nenhum momento nós vimos nenhuma manifestação ou pronunciamento público da Earthworm sobre essas práticas de terrorismo empresarial, barricadas, trincheiras, cercas – cercas que inclusive as comunidades temem que passem a ser eletrificadas. Não conhecemos nenhum tipo de censura por parte da Earthworm a esse tipo de prática da Agropalma. 

WRM: Se consideramos, por exemplo, as localidades camaronesas de Dibombari e Mbonjo, na prática, desde que a Earthworm se envolveu, mudou alguma coisa para as comunidades em relação aos problemas causados pela Socapalm?

SYNAPARCAM: As principais demandas das comunidades dizem respeito a terras, locais sagrados, poluição da água e violência contra as mulheres. Então, essa é uma pergunta muito importante, obrigado. As violações sexuais contra as mulheres, a falta de retrocessão das terras e o desrespeito dos locais sagrados são os três pontos mais graves pra nós. 

Quando as a Socapalm e as suas plantações de dendê foram privatizadas [há mais de 24 anos], a Socfin comprou a Socapalm. Após a assinatura do contrato de arrendamento em 2000, a empresa avaliou a terra arrendada e solicitou ao Estado que assinasse uma emenda, reduzindo a área de 78.000 hectares para 58.000 hectares. Essa redução de áreas está claramente estabelecido na emenda. Mas nada aconteceu. Então, uma das ações da Synaparcam foi plantar alimentos em uma dessas áreas em disputa, pois constatamos que as autoridades não desempenham seu papel de fiscalizadores e a empresa não respeita os contratos assinados com o Estado. Nós continuamos com a ideia de manter essas roças, mas a realidade é de pressão, intimidação e prisões das lideranças.

Outra complicação é a RSPO, que tem classificado algumas terras às quais a comunidade tinha acesso antes como “áreas de alto valor de biodiversidade”, então a comunidade não pode mais entrar – enquanto a Socapalm traçou os perímetros para estender esses blocos e recuperou essas faixas de terra das comunidades - foram colocadas placas e tem guardas da empresa. A RSPO não reconhece todas as áreas reivindicadas pelas comunidades.

Em relação à presença da Earthworm, a situação é de avanço zero; nós estamos onde estávamos lá no início.

WRM: Vocês diriam que essa consequência tem a ver com erros cometidos pela Fundação Earthworm, ou se deve à própria natureza dessa entidade?

ELIELSON: Tem uma questão estrutural aí no que você pergunta. Que propósito norteia a atuação dessa empresa [referring to Earthworm]. Ela nasceu pra que? Quando a gente vê que ela possui ramificações em todo o mundo (Indonésia, África, América LAtina) justamente onde estão as empresas do dendê fica claro que ela é um elo nessa cadeia e faz parte desse jogo de poder. Então eu acho que a atuação dela sempre vai acabar pendendo pro lado das empresas. 

SYNAPARCAM: Constatamos muitas coisas parecidas. Sobre causar divisão das comunidades, no nosso caso, parece que a Earthworm dá dicas de como melhor dividir as comunidades, e aí a empresa manda as equipes. Então é um método muito perigoso também, pois por um lado se aproxima e por outro dá conselhos à empresa de como dividir a comunidade.

WRM: Que mensagem vocês deixariam para uma comunidade que pode vir a ser abordada por uma entidade como a Earthworm, da mesma maneira que as comunidades que vocês acompanham um dia foram abordadas? 

SYNAPARCAM: Não aceitem nunca uma tal oferta porque não haverá mudança nenhuma. E é importante não ter um interlocutor. Se a empresa tem interesse de mudar, ela sabe onde encontrar a comunidade, então, nós recomendamos não aceitar [uma tal proposta de mediação] porque com mediação não vai avançar de jeito nenhum. 

ELIELSON: A primeira coisa que eu diria é “cautela!”. Além disso, evitar que entidades como a Earthworm tenham conversas individualizadas com lideranças. Aquele velho dizer “dividir para conquistar” continua valendo muito. As empresas são especialistas em produzir dispositivos para enfraquecer a luta das comunidades. 

Importante compreender como parte de uma engrenagem. E também conhecer o histórico junto a outras comunidades; conhecer a experiência de outras comunidades que já foram alvo de situações parecidas.  E ter o cuidado de não participar de forma desacompanhada de tentativas de cooptação, persuasão, não tomar decisões precipitadas antes de avaliar conjuntamente com comunidades.

Secretariado Internacional do WRM, Synaparcam e Elielson Pereira da Silva (18)

(1) Informações obtidas no site da Fundação Earthworm
(2) Relatório annual de Fundação Earthworm 2023.
(3) Vídeo disponível em YouTube
(4) Idem (2).
(5) Informação sintetizada a partir dos relatórios anuais da Fundação Earthworm. 
(6) Citação obtida de um vídeo institucional disponível em YouTube
(7) Consulte a cartilha produzida pela Informal Alliance Against Industrial Oil Palm Plantations in West and Central Africa, disponível em WRM 
(8) Para mais informações veja o Boletim 224 do WRM, o artigo da GRAIN sobre como a Socfin obteve as concessões de plantações em Camarões, disponível em WRM, e o seguinte artigo em Mongabay.
(9) Nos referimos mais especificamente aos sete relatórios publicados pela Earthworm entre 2023 e 2025, sobre os conflitos entre subsidiárias da Socfin e comunidades locais nos referidos países. Os relatórios podem ser encontrados em Earthworm.org
(10) Veja mais informações sobre os impactos das plantações da Socfin sobre comunidades em Farmlandgrab.org, Grain, e em WRM.
(11) Os três relatórios da Earthworm sobre a situação em Mbongo, Mbambou e Edéa, publicados em fevereiro de 2025, reconhecem que a Emenda nº 1 do Contrato de Arrendamento prevê a retrocessão de terras, totalizando mais de 8 mil hectares. Os relatórios estão disponíveis em Earthworm.org
(12) Veja mais em Mongabay.com 
(13) Veja mais no artigo “Cleaning up its act or greenwashing?”
(14) Informação obtida em Earthworm.org
(15) Informação obtida no Registro de Reclamações de Fornecedores da SDGI, disponível em SDGI Supplier 
(16) Veja aqui
(17) Veja aqui o relatório feito pela Synaparcam
(18) Professor na Universidade Federal Rural da Amazônia e pesquisador do Projeto Nova Cartografia Social da Amazônia.
 

Declaração do Solidaritas Merauke, um chamado de emergência vindo de Papua: parem o Projeto Estratégico Nacional de Merauke

Em 2023, o presidente na época, Jokowi, designou a regência de Merauke, em Papua do Sul, para mais um Projeto Estratégico Nacional (PSN, na sigla em inglês). O programa de produção de alimentos e energia abrange 2 milhões de hectares, com foco em plantações de arroz e cana-de-açúcar para produção de açúcar e bioetanol. Se for implementado integralmente, pode se tornar o maior projeto de desmatamento do mundo, impactando diretamente uma população indígena de 40 mil pessoas. (1)

O encontro reuniu 256 participantes que vieram não apenas de Merauke, mas de aldeias de toda Papua, bem como dezenas de outras ilhas, incluindo Molucas, Kalimantan, Nusa Tenggara, Sulawesi e Sumatra. O que os une é a oposição à política colonial do Governo Central em Jacarta, que é social e ecologicamente prejudicial, chamada Projeto Estratégico Nacional (PSN). Atualmente, cerca de 200 grandes projetos e programas detêm o status de PSN em todo o arquipélago.

A Indonésia ratificou uma série de protocolos de direitos humanos, incluindo aqueles elaborados para proteger os povos indígenas. No entanto, cada decisão governamental de criar um novo PSN tem sido tomada sem qualquer consulta pública, sendo, portanto, totalmente antidemocrática. Além disso, uma vez que um investimento em PSN recebe luz verde do governo central, as comunidades localizadas dentro e em torno de uma área de PSN passam a ter que cumprir protocolos de segurança muito rígidos. Quando uma comunidade decide rejeitar um PSN, é provável que enfrente intimidação, criminalização ou coisa pior.

Merauke foi escolhida como o local para a grande reunião popular devido à maneira peculiar pela qual o PSN está sendo implementado. Desde o início, o projeto foi claramente militarista (2) e criado para beneficiar oligarquias. Em 2024, o exército inaugurou as obras para estabelecer cinco novos batalhões em áreas de Papua “propensas a conflitos”, dois deles em Merauke. Ironicamente, enquanto a prioridade número um do novo governo Prabowo é fornecer refeições gratuitas a todos os estudantes indonésios, o PSN de Merauke está destruindo a soberania alimentar de milhares de habitantes de Papua.

O PSN de Merauke foi precedido por um PSN semelhante, conhecido como “Área Integrada de Alimentos e Energia de Merauke” (MIFEE), lançado em 2010. As lições aprendidas com esse programa mostram que ele resultou em “apropriação, aquisição e concentração de terras nas mãos de uns poucos donos do capital, exploração de mão de obra, desmatamento, secas e desastres ecológicos generalizados e recorrentes, desnutrição e escassez de alimentos, corrupção, violência e violações de direitos humanos, sendo as vítimas os povos indígenas e os moradores do entorno do projeto”. (3)

Veja, abaixo, o texto completo da declaração, também disponível aqui.

Declaração do Solidaritas Merauke

Esta declaração é o resultado do nosso trabalho coletivo no Movimento Solidaritas Merauke. É fruto das histórias compartilhadas sobre o nosso sofrimento e nosso trauma coletivos causado ​​por crimes empresariais-estatais, principalmente em nome dos Projetos Estratégicos Nacionais (PSN), que ocupam e expropriam nosso espaço de vida e profanam o que consideramos sagrado.

A destruição e a extinção de nossas vidas, nossos saberes e nossa espiritualidade indígenas continuam se expandindo. Estamos perdendo nossa identidade, a memória histórica de quem somos, nossos lugares sagrados, nosso parentesco com a terra e a natureza. Estamos perdendo nossas fontes de alimentos, de remédios e de sustento, assim como a nossa autonomia para o trabalho. Além disso, estamos sujeitos a discriminação, trabalho forçado, violência física, intimidação e criminalização. Esta catástrofe deveria ser chamada de emergência, pelo bem do povo.

Está claro que este sofrimento e esta catástrofe permanentes são um reflexo do colonialismo que está sendo encoberto por uma colcha de retalhos de leis e regulamentos. É irônico que, diante do roubo da riqueza das pessoas, da coerção e do uso da força da lei, do poder político, econômico e militar, das falsas promessas de prosperidade, da destruição de corpos humanos e da exploração de humanos por humanos, as pessoas sejam consoladas com o programa de “alimentação nutritiva gratuita”.

Nós, o Solidaritas Merauke, declaramos nosso repúdio total a essa estratégia de roubar a riqueza do povo por meio da reforma política. Exigimos uma interrupção total do Projeto Estratégico Nacional (PSN) e outros projetos estabelecidos em nome do interesse nacional que claramente vitimizam o povo. Os autores de crimes empresariais-estatais devem devolver toda a prosperidade que roubaram do povo e restaurar imediatamente a saúde e o espaço de vida do povo em todos os territórios sacrificados em nome dos supostos interesses nacionais.

Nenhuma ilha é grande ou pequena demais para poder ter sua paisagem danificada. Se esses sinais gritantes de catástrofe forem subestimados, certamente haverá uma aceleração nunca vista do caos socioecológico das ilhas de Papua a Sumatra.

Sata Kekuatan! Satu Perlawanan! Rawat Kehidupan! (Um Poder! Uma Luta! Cuidar da Vida!)
Merauke, 14 de março de 2025

 

(1) Documento informativo da Yayasan Pusaka Bentala Rakyat, atualizado em setembro de 2024, “The National Strategic Project (PSN) of Food and Energy Development in Merauke Regency, South Papua Province: Violating Human Rights and Worsening Environmental Crisis”, disponível em WRM
(2) Curta-metragem de “The Gecko Project”, de março de 2025, “Militarised deforestation in Papua: how Indonesia is converting indigenous forest into farms”, disponível em YouTube
(3) Idem 1.    
 

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